A Partida

O chão fugiu dos meus pés como o futuro das minhas mãos. Esfreguei os olhos e fiz do dedo régua para me assegurar que, de facto, o meu nome, naquela pauta, mais uma vez, se associava ao que outrora via como fracasso. Um misto de revolta e tristeza tomavam conta da minha entidade. Mais um ano que nunca vou recuperar. Dois anos a travar uma batalha que nunca venci. Sabor amargo, tem a derrota.... Porém, deixa-te com tanta fome. Fome de mais, de vitória. Nunca fui de me contentar ou acomodar seja com o que for. E foi desta falta de conformidade e excesso de teimosia inerente ao meu ser que renasceu a possibilidade de fazer com que o sonho – o único que alguma vez tive – se tornasse mais que isso mesmo.
Nunca escrevi cartas abertas – nem fechadas – ao presidente da República. Contudo, condensei a minha revolta e fui disparando-a pontualmente na caixa de correio do ministro da educação. Argumentava como era arcaica a forma estandartizada como nos avaliavam com exames feitos em massa para milhares de pessoas todas elas diferentes. Com a idade, fui-me mentalizando que as coisas são assim e nunca se vão moldar a nós. 
Não me lembro de querer outra coisa que não Medicina. Escolhi antes de qualquer motivação mundana me poder orientar. Ou escolheu-me ela a mim. Toda a gente sabia. Só gostava de brinquedos relacionados com a atividade médica. Sempre que ia a consultas lá persuadia os médicos a darem-me máscaras e luvas para brincar em casa. Salvei tantos peluches e são inúmeras as operações de risco que fiz a diversos nenucos, todos chegados de hélicóptero com a maior das urgências. Deixei de ter vontade de partilhar esta paixão quando me apercebi que, de certa forma e por motivos que nunca compreenderei, a maior parte das pessoas tenta demover os outros de algo que parece díficil ou, a meu ver, grandioso. “Medicina? Uiii.. Tem que se estudar muito!’’, “Medicina? E tens média?”. Limitava-me a sorrir para toda a gente. Sorria enquanto me enumeravam, sem lhes pedir absolutamente nada, as desvantagens de perseguir aquilo que me faria feliz. Como se alguns daqueles discursos escusados me fosse demover do que quer que fosse.
Tirei cursos de espanhol e sou fluente porque achei que talvez Espanha fosse um bom backup plan, não fossem as coisas correr “mal”. Estive um ano em enfermagem e tanto que aprendi. Quando me perguntam se perdi dois anos, a resposta, hoje, é “Como assim?”. Eu não perdi nada. Tenho em minha posse tudo o que quero. Aprendi a falar uma língua e tive o prazer de estudar num curso que acho, genuinamente, ser dos mais bonitos que por aí existem. Foi em enfermagem que aprendi o que é cuidar de alguém, aprendi que é tão diferente de tratar. Foi lá que aprendi o que é um paciente. Mas isso toda a gente sabe, não é? Não. Não é. Aprendi a diferença entre tocar e mexer, ouvir e escutar, falar e conversar. Aprendi, também, que, por mais que tentasse e programasse a minha cabeça, não era ali que queria estar. Porque todas essas lições foram inexplicavelmente valiosas, mas eu quero tão mais que isso. Se tiver que abdicar de cuidar para tratar, eu quero isso. E todos fazemos falta.
Acabou agora o meu segundo ano. O segundo na Letónia, onde o vento sopra com força e a neve cai sem piedade. Onde arrancar um sorriso ou uma simples frase a um local é mais díficil do que travar a conversa do senhor do café da esquina em Lisboa. Onde o termómetro toca sem cerimónias nos -25C todos os Invernos. Onde o gelo se acumula nos passeios e andar fica tão assustador. Onde a comida é... interessante. Onde eu sou tão, mas tão feliz.

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