os -30ºC

novembro 23, 2017

os -30ºC

Sempre que conhecidos portugueses se apercebem que vivo na Letónia pelo menos uma das seguintes questões é-me colocada (se não todas):

1) Ui esses povos do norte não são lá muito simpáticos, pois não? Não têm nada a ver connosco.

2) E depois quando acabares o curso ficas por lá? Podes exercer cá? (Cá entenda-se Portugal)

3) FRIO! Que horror, deve ser horrível! Neva e tudo, não é?

(Nota: há quem, também, me pergunte como é viver na terra do Pai Natal. Respondo que não faço a mínima ideia, pois nunca fui à Lapónia...; ou como estão as coisas por aqui na Lituânia/Rússia/Kosovo.)

Pois bem, chegámos, então, ao cerne desta publicação: o famoso frio que assombra as ruas da Letónia. Vivendo 20 anos em Portugal, nunca tinha tido contacto com temperaturas extremas. Antes de vir para Riga, muitas foram as tentativas por parte de inúmeras pessoas de me tentar assustar jogando uma e outra vez a carta do frio. Perguntavam-me se fazia ideia do que ia passar, se tinha o mínimo plano definido para lidar com o frio, se na minha mala de viagem guardava espaço para a indumentária pesada que – supostamente – o inverno letão exige. Não. Não tinha nada disso. Outra coisa que também não trouxe foram os tormentos mentais à volta desse assunto. O inverno sempre foi a minha estação predilecta e, de certo, não se viraria contra mim. Tinha um quispo quente na mala e achei por bem comprar o resto cá, depois de observar como os nativos lidavam com tal situação.

Vozes locais dizem que o primeiro inverno que cá passei foi o pior desde algumas décadas. O termométro bateu no -27ºC sem cerimónias, gabando-se de uma sensação real de -30ºC.

Sabem que mais? Não é assim tão mau. É o que digo sempre que me questionam interminavelmente sobre como sobrevivo a adversas temperaturas. A verdade é que estava à espera que fosse bem pior, porém devo confessar que a partir dos -15ºC o corpo já cede e nada sente. O verdadeiro sofrimento está na variação de temperatura entre os 0º e os tais -15ºC. No entanto, as temperaturas negativas na Letónia nunca vêm sozinhas, fazendo-se acompanhar por neve durante meses e um vento de cortar a respiração e qualquer pele exposta.

Sei que toda esta minha descrição parece revogar as afirmações proferidas anteriormente. Contudo, a verdade é que a Letónia está incrivelmente preparada para receber o seu inverno. Os transportes públicos lidam melhor com dias intensos de neve do que chuva, chegam todos a horas e não há atrasos devido às condições meteorológicas; são, ainda, aquecidos tanto pelo calor humano como por sistemas de ar condicionado - tal como qualquer outro local público e habitações. Por baixo de robustos casacos de inverno vestimos roupas perfeitamente normais, que seriam adequadas ao inverno português, dado que assim que entramos qualquer porta esquecemos o frio que nos empurrou até lá dentro.

Evocando a minha opinião pessoal, pior que o frio é, sem dúvida, aquela particular altura em que a neve derrete e os passeios ficam cobertos por nada mais nada menos que gelo, camadas de gelo, e o simples acto de caminhar torna-se o evento mais assustador que possam imaginar, dia após dia. Patrocina desajeitados espetáculos de patinagem artistíca dos que se tentam salvar de ir ao chão, porém, para os mais desequilibrados é inevitável lá parar – estando eu mesma incluída nesse grupo.

A soma de todas estas adversidade é totalmente revogada quando a comparamos com a beleza única da simples passagem das estações que se presencia aqui na maior capital báltica. O outono pinta as ruas de tons caracteríticos da estação, fazendo questão de os realçar em todos os parques espalhados pela cidade. A chuva cai com as folhas e formam-se tapates debaixo dos nossos pés. Quando a última folha cai, sente-se a excitação dos letões que tão ansiosamente aguardam a neve. Esta cai a seu agrado, ora delicamente ora da forma mais revolta possível. Cobre o chão, os prédios, os carros e até pousa sobre os ramos descobertos das árvores. Tudo é branco e cinzento, iluminado pelas decorações de Natal que nesta época já surgem, como tentativa de aquecer o gélido inverno. Vive-se um ambiente mágico e, se cair, fico já sentada para desfrutar do espetáculo.