os Letões

Sou portuguesa, sempre vivi em Portugal. Nasci em Lisboa e tomei Almada como casa. Nunca vivi no estrangeiro, porém nunca senti ter âncoras que me prendessem à Pátria. Fui educada com o toque latino a que a minha nacionalidade obriga. Contudo, creio não ser o espécimen adequado para caracterizar a cultura ibérica. Gosto de sorrir, a conhecidos e desconhecidos. Gosto de pedir o meu café em chávena escaldada com uma pitada de açucar e um sorriso para demonstrar gratidão por quem está atrás do balcão. Gosto que o meu olhar transmita empatia e compaixão, seja ao vizinho, seja à senhora do supermercado que, provavelmente, nunca vou voltar a ver. Porém, não sou de grandes demonstrações afectuosas. Não por não ser capaz de sentir, simplesmente por feitio. Quando era criança, recusava-me a dar beijinhos a toda a gente – excepto aos meus pais. Familiares chamavam-me bicho do mato. Não compreendia o porquê de ter que cumprimentar as pessoas com beijinhos. Hoje, sendo considerada adulta, aceito essa regra da sociedade latina e até compactuo. Mesmo continuando sem perceber a necessidade. Então, por não me agarrar aos abraços a quem vi no dia anterior, achavam que a frieza característica aos povos do norte não me iria ser estranha.


Vim para a Letónia sozinha – história que ficará para outra publicação. Fiquei hospedada num hotel durante a minha primeira semana em Riga. Assim que encontrei casa, multipliquei-me para comprar tudo aquilo que me fazia falta. Dessa epopeia comercial, surge o meu primeiro impacto com os letões. Já tinha reparado que, quando ia comprar um café ou qualquer outra coisa, ao sorrir para eles enquanto fazia o meu pedido me olhavam de lado como quem questiona se estaria sob o efeito de estupefacientes. “Porque está ela tão sorridente?”, era o que os seus olhares me questionavam. Ignorei a falta de reciprocidade e continuei a incomoda-los com a minha simpatia. Creio que o meu beliscão de realidade sobre como interagem socialmente foi numa mera ida ao supermercado. Todo o processo fora perfeitamente normal, como quem vai ao Jumbo ou ao Continente. Dirigi-me à caixa, questionando-me se esta senhora seria diferente, se sorriria para mim ou até se me diria “Labdien” (o bonjour dos letões). Pois bem. Nada. Passou todas as minhas compras e, quando o último beep se fez ouvir, nada. Nem o Ladbien, nem o preço. Simplesmente olhou para mim, esperou que visse o valor que tinha no ecrã e saísse da sua frente o mais rápido possível. Relembro que nessa altura poucas palavras em letão sabia. Apenas Olá e Obrigada, se não me engano. Sei que a minha reação foi fugir dali o mais rápido possível, meia confusa, meia a controlar uma gargalhada pelo espanto inerente à situação. Nem o Paldies (o obrigada letão) lhe dei. Toda esta falta de empatia por parte dos meus novos compatriotas foi-se repetindo, em todo o lado. Nos transportes, os empurrões que, até ter coragem de empurrar de volta, me abençoavam com nódoas negras nos braços; nas lojas, onde estando a observar uma prateleira, me pegavam nos ombros e me reposicionavam para que eu saísse da frente; nos restaurantes onde me reviraram os olhos por fazer um simples pedido, parecia que me estavam a fazer um favor, como se não se tratasse de prestar um serviço a troco de dinheiro. Enfim, tantas ocasiões onde verificar todo este comportamento padrão. 



Foi-me explicado que esta atitude distante dos letões é resultado dos longos anos de opressão que viveram sobre controlo da União Soviética. Foi-me explicado que eles não se derretem perante a simpatia alheia pois, outrora, quem para eles demonstrava simpatia eram os espiões civis da URSS. Que os seduziam em troco de informações, resultando em torturas inimagináveis. Passaram por volta de vinte anos, o que em termos históricos se traduz em segundos. Para eles, ainda tudo é fresco e demasiado recente. São um povo lesado, cicatrizado pela História. Vivem no mundo deles, rejeitando o que é novo. Por medo, dúvida ou desconfiança. Porém, pouco a pouco vão caminhando em frente. São patriotas como nunca vi nenhum outro povo ser. Amam a Pátria. São péssimos em maior parte dos desportos, mas torcem pelas suas equipas como quem torce por campeões. São gratos pela liberdade que alcançaram, festejam como ninguém a data da independência e até as datas onde quase se tornaram independentes. Beijam o solo, quer faça 20º C quer faça -27ºC. Sentem-se respeitados quando falo a língua deles. Hoje, que já me sei expressar em letão com facilidade, olham-me de forma diferente. Sinto que não me vêem como mais uma estrangeira que lhes fala em inglês sem fazer o mínimo esforço de me pronunciar na língua do país que me acolheu. São difíceis de compreender e o escudo que erguem à volta da Letónia é díficil de penetrar. Porém, também há muita falta de esforço por quem cá passa. São mais os que se recusam a aprender a língua do que aqueles que se mostram gratos por aqui poderem realizar os seus sonhos. Queixam-se da falta de simpatia, mas esquecem-se que, ao contrário de nós, um sorriso não significa nada para os letões. Estamos na terra deles. O que valorizam é aquilo pelo qual nos devemos reger. É possível estabelecer empatia, porém há que haver compromisso de quem chega. Eles estão em casa, nós é que não. E somos mais parecidos do que julgamos. Ambos aparecemos tão discretamente no mapa, mas nem isso faz de nós pequenos.

Patrícia Lima
05/11/2017

Comentários

  1. Fico sem palavras para comentar! Como te admiro...Enquanto mãe, sinto que fiz um bom trabalho...Valeu a pena ter perscendido de tanta coisa... Es sem dúvida, excelente ser humano...Adorável...Adoro-te😚

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